“Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para Ele” (Lc 20,38)

 

 

Vida! Qual vida! Toda a vida... é sempre um dom!

Balbuciando o mistério do “Deus Vivo”, o cristão torna-se capaz de tocar em profundidade o mistério da Vida do Criador presente em cada expressão de vida entre nós. A vida é uma dádiva que supera todas as promessas; frágil na sua moldura, efêmera na sua manifestação... mas esta é a nossa certeza maior: navegar nas ondas inquietas da vida nos capacita para sentir o Invisível que nos circunda.

Nessa vida profunda e compartilhada, na ferida e no abraço, no ruído e no sussurro, no fracasso e na vitória, na ausência e no encontro... Deus nos saúda, nos acolhe, nos chama e nos diz: “escolhe a vida!”

 

Deus mesmo, autor e fonte da Vida, está no âmago da vida, faz dela seu “templo”, ajuda-a, suscita-a, dá-lhe o impulso que a faz avançar, o apetite que a atrai, o crescimento que a transforma...

Eu O sinto, eu O apalpo, eu O ‘vivo’, na corrente biológica profunda que circula em minha alma e a arrasta consigo. Quanto mais mergulho em mim, mais encontro Deus no âmago do meu ser; quanto mais multiplico as conexões que me ligam às Coisas, mais estreitamente Deus me circun-da. Ele que prossegue em mim a obra da Encarnação de seu Filho, tão longa quanto a totalidade dos séculos”. (Teilhard de Chardin)

 

Viver é uma arte. A “reverência pela vida” é o supremo princípio ético do amor; por isso, o maior sacramento é ser gente, assumir a vida, viver com paixão e poder dizer a cada momento: “estou no horário nobre da vida”. São justamente os sábios e os místicos que nos ensinam melhor a celebrar o instante, a descobrir o sentido da vida através da experiência do cotidiano.

 

“Em vez de buscar o sentido da vida, ensaie viver intensamente e vivendo intensamente você descobrirá o sentido da vida” (Dostoievski).

 

A surpresa e a riqueza de cada momento faz de cada instante da vida a antecipação do que será a vida plena. Viver a vida neste mundo, em comunhão com todas as expressões de vida, é conhecer a alegria de apostar como se fôssemos eternos. Podemos “viver de modo eterno” vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar...

A fé nos revela que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus. Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna.

 

A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios o bastante para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Por isso não devemos nos preocupar com a morte, mas com a vida. A verdadeira pergunta não é: “existe vida após a morte?” ou “ na ressurreição, ela será esposa de quem?”

O místico e o sábio se perguntam:  “existe vida antes da morte?”

Perguntar-nos sobre o que o pós-morte tem a nos oferecer é uma desfeita à vida.

 

A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que querer especular sobre o que acontece depois dela é grosseria. O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”

 

Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos “vivem”, porque incapazes de re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem morte perde-se, no final, na total irresponsabilidade.

 

Através do “viver para sempre” nos permitimos o prazer, a alegria, o desafio, a criatividade, a festa...

Através do “morrer amanhã” criamos em nós a responsabilidade para com o hoje, sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida, os sonhos não realizados, os riscos que não tomamos por medo...

 

No evangelho de hoje, os saduceus (setor aristocrático e conservador do judaísmo) apresentam a Jesus uma grosseria teológica: confundem a ressureição com um casuísmo sem fundamento. Eles supõem que Deus seja tão sem criatividade a ponto de repetir, na ressurreição, o mesmo esquema de nossas experiências atuais. Jesus rejeita a infantil ideia de que a vida dos ressuscitados é um prolongamento desta vida que conhecemos. A condição das pessoas depois da morte será totalmente diferente da condição atual.

 

Aqui não se trata de satisfazer uma curiosidade, mas alimentar o desejo, a expectativa e a esperança confiada em Deus. Por ser “Deus dos vivos”, a experiência da ressurreição consiste numa Nova Criação. Deus é fonte inesgotável de Vida e acolhe a todos em seu amor de Pai-Mãe. Nesse sentido, há uma diferença radical entre nossa vida terrestre e essa vida plena, sustentada pelo Amor criativo de Deus depois da morte. É Vida absolutamente “nova”, que deve ser esperada, mas nunca descrita ou explicada. As relações interpessoais não serão uma cópia do modo de ser desta vida. A Ressurreição é uma “novidade” que está além de toda e qualquer experiência terrestre e que é antecipada e preparada na maneira de “viver intensamente” esta vida.

 

E afirmar a ressurreição não é consolo ilusório, nem evasão do compromisso com a história e com a vida. É decisão firme de continuar o projeto de Jesus, de defender a vida onde quer que esteja ameaçada, de arriscar-se pelos mais fracos e excluídos para que tenham vida, de “viver dando morte à morte”, curando feridas, levantando corações, semeando esperanças, despregando crucificados.

 

A ressurreição nos faz compreender que esta vida terrestre não consiste em outra coisa senão no tempo da gestação concedido a cada um de nós para que, dentro desse imenso ventre cósmico, possamos aprender a viver de amor e contemplar a obra do Artista.

 

Texto bíblico:  Lc 20,27-38

 

Na oração:  “Senhor, saiba eu caminhar sob o impulso da Vida, aceitando crescer graças ao diferente.

                         As cordas da minha vida sejam dedilhadas pelo delicado sopro de vosso Espírito”.

 

Caminhada Contemplativa: Contemplar a vida no seu mundo cotidiano. Em sua cidade, perceber a vida: talvez uma árvore em sua rua, uma flor na janela, animais e pássaros anônimos em meio à selva de pedra... E, sem dúvida, gente, muita gente, com preocupações, com dúvidas, com medos, com sonhos, com histórias anônimas que nunca vêm à luz.

 

Quando caminhar pelas ruas, preste atenção aos rostos. Imagine os relatos que escondem. Procure entender que há uma força vital que nos une a todos. E então dê graças a Deus por tantas vidas, por fazer parte de um mar de vida, que às vezes é tormentoso e outras, pacífico, mas sempre incrivelmente belo.

 

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana

04.11.2013