“Quando jejuardes, não fiqueis com o rosto triste como os hipócritas” (Mt. 6,16)

Quarta-feira de Cinzas 

 

 

Caminheiros somos, como foi o Povo de Deus, rumo à Terra Prometida, hoje num deserto diferente, povoado de desafios que podem atrofiar a visão e nos colocar à margem do caminho, mas também um deserto de encantos, repleto de sinais e de presença de Deus, que nos impulsiona, nos acompanha nas longas jornadas e nos acolhe no fim da marcha.

 

O tempo da Quaresma é para nós cristãos tempo privilegiado para retomar o ritmo da marcha, esvaziar nossas mochilas do supérfluo, reabastecer-nos do essencial, retomar as metas discernidas e assumidas diante de Deus. É Jesus mesmo que vai à nossa frente, que nos abre um caminho novo, orientado pela solidariedade com os mais sofridos, pela partilha do nosso ser e ter, por um amor incondicional e gratui-to... É Ele que se faz solidário em nossas dores e alegrias, pacificando o nosso interior e revelando o amor do coração paterno e materno de Deus.

 

A oração, a esmola e o jejum, são as três atitudes mais características do tempo da Quaresma. E nem sempre valorizadas como merecem, em nossa existência. A oração é adentrar-nos no nosso próprio interior, porque aí se faz ouvir a voz de Deus. E se ouvimos sua voz, nossa vida tomará um estilo diferente, mais evangélico. Mas dificilmente podemos entrar no interior se nos deparamos com um coração endurecido, hermético. Quando a oração é levada a sério, podemos prescindir de muitas coisas, fazer um autêntico jejum: de alimento, de tempo, de caprichos... Chegar a viver aquela sábia sentença de S. Francisco de Assis: “Desejo, realmente, poucas coisas, e as poucas coisas que desejo as desejo muito pouco”. Então, já não é preciso perfumar-se e nem lavar o rosto, mas compartilhar a partir da generosidade que Deus desperta. E isto tem um nome: esmola.

 

O tempo da Quaresma é tempo propício para recuperar o sentido da prática do jejum. O jejum real e sincero nos ajuda a fortalecer a liberdade interior frente às falsas necessidades, obriga-nos a renovar e confirmar o desejo de recorrer a Deus, de purificar nossa vida e exercitarmo-nos na oração e na justiça. O jejum e a sobriedade favorecem a aproximação espiritual a Deus e aos irmãos que sofrem. Ambos terminam facilmente na oração e em obras de amor e misericórdia (esmola). O jejum implica uma parada, graças à qual, a pessoa perseverante pode retomar suas energias que estão meio perdidas, para reuni-las e orientá-las para seu destino original. O jejum é um “olhar amoroso e vigilante” sobre si mesmo e para si mesmo, uma tomada de consciência sincera na direção de uma transformação profunda.

 

Na tradição dos Padres do Deserto, o jejum é o meio que a pessoa utiliza para criar um “espaço vazio” no qual o Espírito possa repousar, permitindo-a distinguir o essencial do supérfluo. O jejum tem a finalidade de nos possibilitar a experiência da falta. Descobrir que, além dos alimentos que nos nutrem, é o Senhor da vida que nos nutre. É sentir também nossa fragilidade. É uma maneira de retornarmos ao essencial, aceitar-nos em nossos limites. E é do fundo de nossos limites que invocamos a Deus. É do cerne de nossa humanidade que nós reencontramos a chama da divindade.

 

O jejum nos torna mais simples e humildes, mais conscientes de nossa própria fragilidade e debilidade, mais compreensivos e compassivos com as fraquezas alheias, mais misericordiosos; então, sim, ele está contribuindo para que Deus nos modele segundo o que Ele é. O jejum nos desperta para a solidariedade; com o jejum não vamos remediar a fome no mundo, mas sim, expressar que a fome no mundo nos diz respeito e nos afeta. E somos tão afetados que, voluntariamente, nos aproximamos da experiência de quem todos os dias dorme com o estômago vazio. É um gesto, antes de tudo, de compaixão, de padecer juntamente com os que sofrem.

 

Diante de uma sociedade que valoriza o ser humano em função do que consome – “consumo, logo existo” – nosso jejum é um grito que anuncia que o ser humano é valioso em si mesmo, porque assim o é para Deus.  O que anima a pessoa a realizar o gesto forte de “ordenar-se”  é a sua liberdade, o seu desejo de união com Deus e com toda a humanidade. É a busca da “vida em plenitude”.


Corresponde a cada um saber quais são os setores da vida nos quais lhe convém exercitar o jejum:

- Jejum da palavra para aprender a escutar.

- Jejum dos pensamentos para viver no presente.

- Jejum na utilização dos meios de comunicação para poder assimilar tanta informação.

- Jejum na comida, na roupa, na bebida, nos bens supérfluos... para ser capaz de agradecer tanta diversidade de dons...

- Jejum de ressentimentos, tristezas, medos e outros sentimentos negativos para que a vida possa fluir com mais liberdade...

 

Corresponde a cada pessoa encontrar sua ascese, ou seja, encontrar a maneira de ir esvaziando-se, despojando-se, para deixar espaço aos outros e ao Outro e chegar a viver em estado de união. Sem esta ascese, há saturação, banalização e exigências que nos levam ao endurecimento do coração. Disto brota uma relação muito íntima entre a atrofia do Transcendente e a atrofia da solidariedade.

 

É urgente fomentar uma “cultura da austeridade, da comunhão, da partilha...”, se não queremos nos desumanizar, nem desumanizar o planeta. A ascese nos capacita para a solidariedade; o ordenamento de nossos desejos nos permite escutar os desejos dos outros.

 

A ascese nos dá liberdade para sermos independentes das coisas e vivermos com o essencial. Não se trata de privar-se de “desfrutar”, senão de evitar que o “desfrutar” se converta numa obsessão e numa dependência. A sensibilidade para com os outros desaparece na medida em que as próprias pulsões se tornam intensas e descontroladas. Trata-se de não saturar o desejo, mas de deixá-lo aberto, como dinamismo para o Ultimo Desejo. Quanto mais vivemos em Deus, menos somos nós o centro, menos dependentes das coisas e mais receptivos somos aos outros.

 

Textos bíblicos:   Mt 6,1-6.16-18   

 

Na oração: Nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus”  no deserto, para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida.

 

A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de reconstrução de si (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão, mais partilha, mais solidariedade...).

 

- qual é o seu estado de ânimo e disposição para viver esta Quaresma?

- Você está preparado para a travessia do deserto? Está disposto a “caminhar”, a “sair”.

- Você está disposto a ser mais servidor, mais acolhedor, mais atento aos outros... nesta Quaresma?   

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI

11.02.2013