“Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo. 18,37)

 Festa de Cristo Rei

 

Jesus, rei atípico. Qualquer conotação que o título tenha com o poder, deturpa a mensagem evangélica. Uma coroa de ouro na cabeça e um cetro de brilhantes nas mãos é uma ofensa ao mesmo Jesus.

 

Jesus não se apóia na força das armas, nem se move no interior do sistema que se sustenta na injustiça e na mentira. Tem um fundamento completamente diferente. Sua realeza provém do amor de Deus ao mundo. Ele reina entregando sua vida.  Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos. Jesus reina perdoando, amando, a partir de uma situação de humilhação e impotência. João nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até à morte. Um rei crucificado é uma contradição. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de verdade, de solidariedade e de misericórdia.

 

Jesus é rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “gloriosos”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia do excluídos e não dos poderosos do povo. Um rei que lava os pés dos seus, um rei despojado de poder, de riqueza e que não pode defender-se.

 

Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Não tem exército, nem armas. Até os seus o abandonaram. Mísero rei!

 

O título de Cristo Rei foi proclamado pelo Papa Pio XI (1925) quando a Igreja estava perdendo seu poder e seu prestígio, acossada pela modernidade. Como pura imitação dos reis deste mundo, o triunfa-lismo religioso corre o risco de utilizar este título para manipular idéias, dominar consciências, alimentar sentimentos de culpa, impor o servilismo e o medo...

 

Frente a isto, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos...

 

Diante dos donos do poder e das autoridades religiosas que se julgam em posse da verdade e que tem um

Deus feito à medida de seus interesses, Jesus afirma que “veio para dar testemunho da verdade”. Jesus é o mártir da Verdade. Quando diz que “veio para dar testemunho da verdade” Ele não está falando de morrer por uma doutrina teórica, nem se refere a verdades doutrinais ou a um conjunto de crenças; Ele está falando da verdade de Seu Ser e da verdade de todo ser humano.

 

Jesus é o Homem autêntico, a referência de ser humano, o ser humano verdade. Jesus é a última referência para todo aquele que queira deixar transparecer em sua vida a verdadeira qualidade humana. Jesus é verdadeiro porque revela o que é mais nobre em seu coração; não usa máscara, é pura transparência do rosto do Pai.

 

A Verdade é uma das grandes carências existenciais; ela aponta para o sentido da existência, expressa a grande e permanente busca do ser humano. Não se trata de uma necessidade periférica, mas uma dimensão que nos humaniza. Jesus, diante de Pilatos, se apresenta como resposta a esta busca.

 

“Conhecer a verdade” é aspiração humana inata. O ser humano tem sede de verdade. Vai buscá-la nas encostas do mundo e nos recôncavos de seu espírito. Descobrir a verdade é conquista alvissareira. Compensa atravessar vigílias e trilhar veredas para chegar à verdade. Uma das angústias humanas é não alcançar o manancial da verdade. Enquanto existir verdade encoberta, o ser humano vive inquieto.

 

A verdade clareia a vida. Sem a verdade, a existência é sombria. A verdade gera autenticidade. Onde falta a verdade, instala-se lacuna na existência. Quem não vive a verdade, está “carunchado” por dentro. Impregnar-se da verdade é humanizar-se.

 

O ser humano busca a verdade; antes que “ter” verdade, ele quer “ser verdade”, ele deseja existir na verdade. Jesus afirma: “eu sou a verdade”, e não “eu tenho a verdade” (poderia fechá-lo diante da verdade do outro, caindo no fundamentalismo). O importante não é ter a verdade, mas ser verdadeiro. A pessoa verdadeira pode entrar em ressonância e em sintonia com a verdade do outro.

 

Ser “testemunho da verdade” requer “viver na verdade”; e viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade (com suas luzes e sombras) e da verdade dos outros. Quando alguém transita por este caminho, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na verdade” (S. Teresa).

 

Ser seguidor de Jesus é fixar o olhar n’Ele, pois Ele é o centro do nosso caminho; ao caminhar com Ele, vamos nos revelando e a partir d’Ele vamos descobrindo nosso ser verdadeiro (que nos abre para acolher a verdade presente em cada ser humano – verdade que vai além das verdades religiosas, políticas, ideológicas...). É significativo que os antigos gregos entenderam a verdade como “a-létheia” (“sem véu”), ou seja, quando emerge a verdade de nós mesmos.

 

Quem se descobre verdadeiro e sem máscara, vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida.

Esta é a via da humanização; e quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos. A verdade não é um dogma e sim um caminho. Quanto mais verdades absolutas, mais estreito vai ficando o nosso mundo. A humanidade busca a verdade, mas também pode asfixiá-la. Costuma-se calar a verdade que incomoda. Também existe sempre a tendência de querer impor, pela força, pelo medo, aquilo que acreditamos ser verdadeiro. “A verdade também pode ter suas vítimas”.

 

Mas a verdade é indobrável. Mesmo ensanguentada, não capitula. Nunca podemos abrir mão de uma busca por uma verdade que subverta. Importa “inventar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade, “descobrir o que está oculto”, “fazer surgir o novo”. Acatar a verdade é sinal de maturidade. A verdade é limpa. É inocente. A verdade retira o mundo da escuridão. Quando a verdade habita a consciência, o ser humano ilumina-se. Onde há verdade há humanidade transparente. Há rosto fascinante”. (cf. Juvenal Arduini).

 

Verdade não é apenas um princípio abstrato. Verdade é a realidade existente, o fato concreto, ela mostra o que existe e o que não existe. A verdade salienta a dignidade da pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano preserva os valores consistentes. A verdade descobre o que está recoberto, des-vela o que está velado, des-oculta o que está escondido, des-lumbra o que está ensombreado, des-mascara o que está camuflado, des-emudece o que está calado, des-cativa o que está algemado.

 

A festa de “Cristo Rei” é uma boa oportunidade para o encontro com a nossa verdade: n’Ele, todos somos “reis”, ou seja, todo aquele que se identifica com Ele é também rei. Reis servidores devemos ser todos.

Comprometemo-nos com o “Reinado de Deus”, porque como reis, estamos todos a serviço de todos.

 

Texto bíblico:  Jo. 18,33-37

 

Na oração:

precisamos dar passos em direção a maiores níveis de verdade humana e evangélica em nossas vidas, nossas relações, nossas instituições...

* o que há de verdade e o que há de mentira em nosso seguimento de Jesus?

* onde há verdade que nos humaniza e onde há mentira que nos atrofia?


Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI

20.11.2012