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“Mas nós lhe proibimos, porque ele não é dos nossos” (Mc 9,38) 

Cresce hoje a consciência sobre a diferença do ser humano como atração, e não como rejeição. A humanidade pós-moderna exige a diversidade na convivência sociocultural e religiosa. Não podemos permanecer trancados em redutos que rejeitam as diferenças existenciais. A humanidade deixou de ser distante para tornar-se mais próxima, mediante as diferenças, os diálogos e as convergências. O mundo globalizado não pode ser apenas econômico. É chamado também a respeitar e a cultivar as diferenças entre as pessoas, as raças, as religiões, as sociedades e as nações. 

No entanto, corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o diferente, mas só como notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas que acontecem”, mas não sente e nem se compadece por elas. 

Marcos, no evangelho deste domingo (26º Tempo Comum), recolhe vários ditos de Jesus a partir de uma reação tipicamente preconceituosa do grupo dos discípulos: a de impedir um desconhecido utilizar o nome de Jesus, por uma única razão: “não era dos nossos”.  Frente à reação excludente dos discípulos, Jesus propõe a tolerância que nasce de uma atitude aberta e inclusiva. Ao longo da história humana, a etiqueta “dos nossos” gerou desprezo, ódio, preconceito, enfrentamento e morte, numa sequência desumana de sofrimento inútil.

A ironia é que se trata justamente disso, de uma mera etiqueta, completamente superficial e enganosa, que nasce do próprio medo e insegurança, que leva a nos “proteger” do diferente, buscando refúgio naquilo que nos é conhecido. 

O diferente não pode ser uma ameaça; no entanto, na vida nos defendemos e, às vezes, questionamos e atacamos posturas, visões políticas, teológicas, espiritualidades, modos de viver uma religião..., culminando em rupturas e, em alguns casos, em conflitos ou ódios. Aos poucos, nos recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que os diferentes são nossos inimigos. Da indiferença passamos aos discursos fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação, ao fanatismo... 

Pode, a identidade cristã coexistir criativamente, e de quê maneira, em meio a uma cultura plural e de identidades múltiplas como a nossa? 

O que está em jogo reveste tal gravidade que exige modificar radicalmente nosso modo de ver e de agir: cortar a mão (modificar as ações), cortar o pé (mudar o rumo) ou arrancar o olho (transformar a visão). Trata-se de um processo que nos impulsiona a crescer em humanidade, esvaziando nosso “ego” de suas inseguranças, medos e preconceitos. 

Tal transformação radical pede olhos capazes de olhar o mundo em sua complexidade e em suas feridas; mãos prontas para acariciar, construir, e abertas para o encontro e o abraço; pede pés para encurtar distâncias e criar proximidade acolhedora; pede boca disposta a falar com palavras de verdade e de benção; pede coração disposto a implicar-se, vibrar... às vezes, romper-se. Membros que se gastam no serviço. Enfim, sempre amar, com o fascinante que é viver como cristãos de carne e osso.

Sabemos que do ponto de vista psicológico, a questão da intolerância, do preconceito e do fanatismo se acha vinculada à segurança. A segurança constitui uma necessidade básica do ser humano.

Enquanto a pessoa não faz a experiência de uma segurança firme e interna que a sustente, ela buscará fora de si – projetando-a em um líder, em um grupo ou em uma instituição -, ou se fixará em suas ideias, crenças e convicções. Quando isso acontece, a pessoa insegura não poderá tolerar que seu líder, seu grupo, sua instituição, sua religião, sejam questionados; assim como tampouco poderá permitir que suas ideias, crenças ou convicções sejam criticadas. Isso tirará o tapete de sua própria estabilidade.

Para uma pessoa fechada em seu fanatismo, preconceito e intolerância, “os outros” são percebidos como ameaça; porque, quem pensa diferente ou adota um comportamento diferente, lhe faz ver que o seu pensamento ou comportamento não são o valor “absoluto”, senão mais um ao lado de tantos outros.

E isto é o que uma personalidade insegura se vê incapaz de tolerar, pela angústia que lhe gera a falta de seguranças “absolutas”. Por isso mesmo, sentir-se-á incapaz de tolerar a divergência, e tenderá a desqualificar, julgar, condenar (ou empenhar-se em “converter”) a quem não pense como ela. Porque percebe toda diferença como ameaça.

A “saída” do fanatismo requer experimentar uma fonte de segurança que se encontra mais além da mente (de suas ideias ou crenças). Uma experiência que confere à pessoa uma sensação interna de consistência e de autonomia. Quem é capaz de ter acesso ao seu “eu” mais profundo, relativiza também o caráter absoluto que tinha atribuído às ideias e crenças e, ao mesmo tempo, permite aos outros serem diferentes, sem que a diferença seja vista como perigo. 

Não é comum prestar atenção ao que acontece no território interior. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade  social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio território se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz. 

E, retomando a queixa de João no Evangelho de hoje, podemos perguntar: “quem são os nossos”? Grupos, tribos, nacionalismos, partidos políticos, religiões e ideologias de todo tipo tendem a definir com claridade os limites que marcam o próprio “território”, impedindo que “os outros” tenham acesso a ele. 

A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência. Nada mais contrário ao espírito cristão que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do ar para arejar a própria vida. 

Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e violência. “Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e dos diversos fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos sites católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos testemunhos» e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua descontrolada «é um mundo de iniquidade; e, inflamada pelo inferno, incendeia o curso da nossa existência» (Tg 3, 6).” (papa Francisco, Gaudete et Exsultate, 115) 

Texto bíblico:  Mc 9,38-43.45.47-48 

Na oração:  O que é o específico de uma vida cristã? Buscar, no seguimento, fazer e viver o que fez e viveu Jesus. Para isso, adotar as atitudes, o olhar e a capacidade de contemplação da realidade que o mesmo Jesus adotou. Ele abraçou diferenças e novos horizontes. O Seu ministério ultrapassou as fronteiras. Ele rompeu com os muros do preconceito social, racial, religioso...

- Deixar a luz do Evangelho desvelar (tirar o véu) possíveis atitudes intolerantes e preconceituosas diante dos “outros diferentes”. 

Pe. Adroaldo Palaoro sj