“Fazei isto em memória de mim”
Nesta Quinta-feira Santa, celebramos o Amor até o extremo de Jesus, a radicalidade de sua ternura que se faz cuidado até o ponto assumir todo o sofrimento da humanidade mais excluída e da criação mais ferida. Jesus é a misericórdia em ação, a misericórdia em relação, vivida no corpo a corpo com as pessoas mais oprimidas e exploradas. N’Ele se faz carne e se revela o rosto do Deus todo cuidadoso da Criação, que vela pela dignidade de toda criatura, que “não quebra o ramo já machucado, não apaga o pavio já fraco de chama” (Is. 42,3).
Mais uma vez, durante o tempo quaresmal deste ano, a Igreja do Brasil (CNBB) nos alertou para os perigos da devastação do meio-ambiente, além de despertar a atenção de todo povo cristão para o cuidado e proteção da Criação de Deus que nos foi confiada.
Com o tema “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida” e o lema: “Cultivar e guardar a criação” o objetivo foi dar destaque à diversidade da cada bioma e criar relações respeitosas com a vida e a cultura dos povos que nele habitam.
“Cultivar e guardar” nascem da admiração. A beleza que impacta nosso coração faz com que nos inclinemos com reverência diante da Criação. Como discípulos(as) do Senhor, temos a missão de sermos servidores(as) no amor, dentro das relações vividas no cotidiano de nossa realidade.
Tocados pela bondade e diversidade dos biomas, somos conduzidos a uma grande ação de graças. E a Eucaristia é o momento privilegiado para isso.
Em Jesus, Deus se revelou encarnado na história e, por sua atuação, morte e ressurreição, fica claro que Ele fez do universo seu corpo. A presença real de Jesus, no pão e vinho da Eucaristia, nos desperta a reconhecê-Lo presente no coração do Cosmos e da História.
Céu e Terra estão integrados; o finito se faz espaço e revelação do Infinito, e Deus acontece nas relações humanas interpessoais e nos cuidados por tudo que diz respeito à harmonia neste mundo.
Pela Eucaristia, valorização definitiva do universo através da comunhão, somos confrontados com a presença transformadora de Deus em tudo e em todos.
A Eucaristia nos educa no respeito e cuidado para com tudo aquilo que nos cerca. Tudo e todos são sinais do divino, que rejeita toda forma de dominação e exclusão, exploração e divisão, substituindo-a pelo respeito e cuidado que integra a natureza, promove a vida e confraterniza a convivência.
A Eucaristia clarifica e atualiza a Vontade do Pai: “E a vontade d’Aquele que me enviou é esta: que não perca nenhum dos que Ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo. 6,39).
É o papa Francisco quem, em sua importante encíclica “Laudato si´” (n. 236), alude a esta dimensão cósmica da eucaristia. Porque no pão e no vinho da se concentra toda a essência da Criação, a exube-rante riqueza de seus recursos, a fecundidade inesgotável dos biomas, a beleza deslumbrante de suas fontes e rios, de suas matas, de suas montanhas...
“A Criação encontra sua maior elevação na Eucaristia.(…) O Senhor, no apogeu do mistério da encarnação, quis chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar de uma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão eucarístico, a criação está orientada para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador. Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira”.
O texto acima é, sem dúvida de uma grande densidade teológica. Os dons eucarísticos, o pão e o vinho, por sua condição material e terrena e por sua vinculação com o trabalho humano, são parte da criação, são algo nosso, “um pedaço de matéria”; pertencem à nossa condição mais própria e íntima.
Tudo isto aponta para a convicção de que, no insondável mistério eucarístico, os dons apresentados são uma representação do cosmos inteiro. Todo o universo cósmico é assumido e se faz visível na Eucaristia. Desde modo a Eucaristia acaba se convertendo no centro do cosmos, no “centro vital do universo”.
Quem come do Pão e bebe do Vinho, entrega-se ao dinamismo da Ressurreição, comprometendo-se com a luta contra as forças da morte: egoísmo, violência, indiferença, omissão política, desonestidade na gerência dos bens, descuido nas relações afetivas, isolamento no medo, destruição do meio-ambiente, poluição...
Simbolicamente, na Eucaristia, o pão é partido para significar a doação de Jesus; e ao comermos deste pão, aceitamos ser como o grão de trigo que, caído no chão da história, produz frutos para o bem de todos. Essa presença mística de Cristo em nós, dinamizada pela Eucaristia, consagra irmãos solidários, cidadãos do mundo. Aqui está o fundamento da espiritualidade ecológica que nos faz sensíveis para guardar e cuidar todas as expressões de vida, reveladas nos diferentes biomas de nosso país.
Cultivar a “memória de Jesus”, de tudo que celebrou na Última Ceia, é tornar viva e atual Sua presença nas diferentes refeições junto ao seu povo. Consciente da missão que o Pai lhe confiara, Ele despertava as pessoas para seu próprio valor, para a dignidade e originalidade de cada um...
Nessa perspectiva, Ele as libertava da banalidade do medo, do poder excludente, da ansiedade, da culpa e da passividade na submissão, para um sentido superior de ser e conviver.
Na prática do amor, Jesus se fez presente-doação em todas as situações de exclusão e marginalidade, envolvendo a todos com a solicitude misericordiosa do Pai.
Tal doação-entrega atingiu o cume na partilha do pão e do vinho, na celebração da Eterna Aliança.
O dom eucarístico, portanto, tal como a humanidade de Jesus, não pode ser reduzido a um simples objeto desligado das demais relações envolventes (com Deus, com os outros e com toda a Criação). “Como o pão é um só e o mesmo, formamos todos um só corpo” (1Cor. 10, 14-22).
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: Nem sempre estamos preparados para assumir a tarefa tão humilde do Lava-pés, porque esta tarefa implica prostrar-se, descer ao húmus, entrar em contato com a terra, o barro, a poeira… Lava-pés é o gesto humilde que não nos humilha, mas nos humaniza e nos faz viver a comunhão com toda a Criação. Não é evento, mas hábito de vida, um “modo de proceder” que mais nos identifica com Aquele que mais “cultivou e guardou a Criação”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj