“Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares” (Mc. 6,4)

 

Jesus Cristo continua a nos surpreender enquanto referência inspiradora da grande ousadia humana. Ele fez brilhar a “novidade” de Deus nas vilas e cidades da Palestina. Desde seu cotidiano na vida oculta até sua corajosa atividade pública, Ele nos ajuda a reler o Evangelho com olhar novo e coração abrasado. No encontro com as pessoas, com os conflitos, com os momentos de alegria e com os riscos de sua missão, Ele mostra vigor e coragem de ir além.

 

Sua postura de mestre e sua atuação desencadeiam no seu povo uma crise, ou seja, rompe com a “normalidade doentia” das pessoas e se revela imprevisível e desconcertante. Na realidade, o ser humano tende a instalar-se, acomodando-se facilmente ao conhecido e se deixando levar pela rotina que evita sobressaltos; isso lhe confere uma certa sensação de segurança e tranquilidade: “para quê e por quê mudar...?”  E isso ocorre também com suas ideias, crenças, cosmovisões...

 

Habituado a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, custa-lhe abrir-se a outras percepções, novas ou desconhecidas. A crise que Jesus introduz entre os seus visa redimir o ser humano, isto é, tirá-lo de seu horizonte limitado e estreito para elevá-lo a um horizonte amplo, próprio de Deus.

 

A crise irrompe quando os dois horizontes se entrechocam. Jesus proclamou uma mensagem que constituía uma crise radical para a situação social, religiosa, política e humana da época. Proclama o Reino de Deus.

 

No Evangelho de hoje, Jesus provocou, por suas atitudes e palavras, um cisma nos seus conterrâneos, isto é, produziu uma crise que levou a uma ruptura-decisão pró ou contra Ele. Jesus é realmente a crise do mundo. Ele veio para provocar uma derradeira decisão das pessoas pró ou contra Deus, agora manifestado em sua pessoa, em seus gestos e em suas palavras.

 

Ele não foi simplesmente a doce e mansa figura de Nazaré; foi alguém que tomou decisões fortes teve palavras duras e não fugiu a polêmicas.

 

O relato de hoje é surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente pelos seus parentes e familiares. É a primeira vez que Ele experimenta uma rejeição coletiva, não dos dirigentes religiosos, mas de sua comunidade familiar, com quem convivera tanto tempo. Jesus se sente “desprezado”: os seus não o aceitam como portador da mensagem profética de Deus. Por isso, fecham-se em sua ideias preconcebidas a respeito do seu vizinho Jesus e resistem a abrir-se à novidade revolucionária de sua mensagem e ao mistério que se revela em sua pessoa. Porque estavam acostumados a ouvir sempre o mesmo, rejeitam-no por ensinar “coisas novas”.

 

Mas Jesus não se deixa domesticar e nem se acomoda às expectativas de seu povo. Aos olhos de Jesus nada é mais perigoso para o espírito humano do que vidas satisfeitas, que não investem seu tempo alimentando sonhos e esperanças; mentes sem inquietações, sem o impulso das buscas; corações quietos, acomodados, ajustados, medrosos, covardes, petrificados, sensatamente contentes com aquilo que são e têm.

 

Há uma “normalidade doentia” que reprime a nobreza potencial no humano. Para Kierkegaard, “ser um homem normal é ser doente”. Há uma saúde fictícia, caracterizada pela ausência de um sentido maior, pela atração ao conformismo coletivo, pelo medo de expor-se, de arriscar-se a ser... pela incapacidade de assombrar-se diante dos acontecimentos e encontros cotidianos. “Tudo torna-se tão normal... e sem sal”; nada afeta, nada causa admiração ou espanto.

 

Vida morna, sem sabor, sem criatividade;  incapacidade de transfigurar a existência cotidiana. Aliado ao conformismo e à segurança aparece o medo da mudança. A pessoa fecha-se no conhecido por medo do desconhecido. Marcada pela “normose”, ela fica presa no interior de uma pequena toca.

 

Para quem não está disposto a ousar transparecer, a prisão da toca pode ser mais atraente do que o desconhecido proporcionado pela liberdade. “Em uma cabeça com medos não há espaço para sonhos”.

O medo das trilhas criativas da originalidade gera hábitos fechados, ideias fixas, conservadorismo, rotina sem sentido, ações insensatas (sem sentido, mecânica, automática, sem novidade...); sabe “fazer” mas não sabe “criar”; faz o que os outros mandam e faz bem, mas sem paixão, sem emoção, sem inspiração...; é perfeccionista, para satisfazer as expectativas dos outros e não ser criticado... Por não viver a partir do interior, a pessoa deixa de ter horizontes, de sonhar, de desejar...; tem medo de fazer a “travessia” pois não tem direção, não tem projeto. Daí o desânimo existencial.

 

O desafio é este: ousar ir além ou se conformar, evoluir ou estagnar, ser original ou mero repetidor...

Existe em nós um desejo de plenitude e, ao mesmo tempo, o medo de arriscar, a pulsão de vida e a pulsão de morte. A normose está relacionada com a pulsão de morte. É a estagnação ou morte do desejo,  impedindo o fluxo da vida.

 

Somos convocados a existir, a trazer uma novidade, um canto novo, uma dança nova... Não nascemos para morrer, nascemos para ser. O ser humano é um ser do caminho; cada um se tornará um ser plenamente humano à medida que investir as reservas de criatividade presentes no próprio interior.

 

Se a pessoa for capaz de escutar o desejo profundo que a habita e atravessar os medos paralisantes, alcançará uma identidade pessoal, ou seja, a capacidade de ser ela mesma. Isto significa romper com os padrões que atendem às expectativas dos outros, transgredindo com o legalismo e o moralismo impostos a partir de fora.

 

Os “não-normóticos” são aqueles que fazem a experiência da “outra margem”, vislumbram o outro lado, vão em busca das surpresas, das novas descobertas, tocam as raízes mais profundas do próprio ser.

 

É preciso sair dos trilhos conhecidos e viciados da normose para tomar as desconhecidas e criativas trilhas evolutivas, nas quais o ser humano enfrentará seus medos e florescerá com vigor e ternura; urge fazer o êxodo da estreiteza de nosso ser à largueza do coração.

 

É uma grande aventura tornar-se humano, sujeito da própria existência, ser dotado de um semblante único e assumir a direção dos próprios passos, realizando assim, a aspiração profunda de seu coração. O novo sempre vem e sempre nos surpreende. E o risco é a essência de uma vida espiritual integrada. O risco fortalece, revitaliza, faz fluir a adrenalina através da corrente sanguínea de nossa vida, faz com que de novo mereça a pena viver a vida.

 

Como são humanamente repletos de vida aqueles que ainda se encantam com as buscas! Sua vida é penosa, sem dúvida, mas repleta de razões, fervor, criatividade, entusiasmo e vitalidade. O ser humano é um eterno enamorado de esperanças, um ousado, um contestador de tudo.

 

Ousar também tem a ver com “transgredir”. Nós cristãos seguimos Aquele que é considerado o maior “transgressor” da história: Jesus Cristo.

 

Como o próprio Jesus, precisamos cultivar a arte de transgredir a inércia, o “pensamento único”, a normalidade petrificada. Há sempre um “mais além” com que podemos sonhar. Transgredir é transcender, é abrir estradas fechadas, é alargar horizontes estreitos, é soltar os desejos algemados.

 

Transgredir é inventar alternativas. E ousar é transgredir em favor da humanidade.

 

Texto bíblico:  Mc. 6,1-6 

                            

Na oração:

Dar nomes às normoses presentes na sua vida.

“Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?” (foi criativo, inventivo...)

- O que asfixia, tira a criatividade e o ânimo nas atividades assumidas no dia-a-dia?

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Centro de Espiritualidade Inaciana

03.07.3012