Epigrama nº 2
És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.
Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
CECíLIA MEIRELES
In Viagem, 1939
“Quando eu morrer… se pusessem uma lápide no lugar onde ficarei, poderia ser algo assim: “Aqui jaz, indignado, fulano de tal”. Indignado, claro, por duas razões: a primeira, por já não estar vivo, o que é um motivo bastante forte para indignar-se; e a segunda, mais séria, indignado por ter entrado num mundo injusto e ter saído de um mundo injusto. Mas temos de continuar, de continuar andando, temos de continuar"
José Saramago
HOUVE um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
HOUVE um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
HOUVE um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, a às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
HOUVE um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma regra: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
MAS, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Cecília Meireles
Ofertas de Aninha
(Aos moços)
Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.
Aprendi que mais vale lutar
Do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.
Cora Coralina
In: “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”. 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p.145.
Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia. Esse jeito de ver além dos olhos, de ouvir além dos ouvidos, de sentir a textura do sentimento alheio, tão clara, no próprio coração. Essa sensação, às vezes, de ser estrangeiro e não saber falar o idioma local, de ser meio ET, uma espécie de sobrevivente de uma civilização extinta. Essa intensidade toda em tempo de ternura minguada. Esse amor tão vívido em terra em que a maioria parece se assustar mais com o afeto do que com a indelicadeza. Esse cuidado espontâneo com os outros. Essa vontade tão pura de que ninguém sofra por nada. Esse melindre de ferir por saber, com nitidez, como dói ser ferido. Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia.
Ana Jácomo
“Também eu proclamarei a grandeza deste dia:
O Imaterial encarnou,
O Verbo fez-se carne,
O Invisível deu-se a ver,
O Eterno começou a existir,
O Filho de Deus tornou-se Filho do homem.
É Jesus Cristo, sempre o mesmo,
Ontem, hoje e pelos séculos dos séculos. (…)
Venera o nascimento que te liberta dos laços do mal,
Honra a pequena Belém que te devolve ao paraíso.
Reverencia este presépio, porque graças a ele, tu, que estavas privado de entendimento (de logos!),
recebes como alimento a Inteligência divina, o próprio Logos divino”
Gregório de Nazianzo, Discurso 38 (Sobre o Natal)
Doce pequena criança
Ensina-nos a amar
Que de amor compreendemos
Pouco, muito pouco...
Toca nosso olhar com sua
Pequena doçura
Mostra-nos o que é cuidar
Que sabemos pouco, muito pouco...
Envolve-nos com seus pequenos
Braços e abraços
Protege-nos da maldade humana
Antes que esqueçamos a solidariedade
Que a sua dor criança desperte a nossa
Consciência...
Que o seu olhar no nosso olhar
Acabe com toda violência
Ensina-nos a amar...
Marcelle Durães
"A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre."
José Saramago
Há inevitalmente, em qualquer período
entre catástrofes, uma noite de chuva boa.
O trabalho termina mais cedo e pensamos
ainda ontem tudo era cálculo, sordidez
e sangue, mas agora a paz respira amplamente.
Ainda há, inevitavelmente, o amor
que ainda se ergue, que ainda caminha
como um animal sem medo dos relâmpagos.
Daniel Francoy
O MAIS IMPORTANTE NÃO É
O mais importante não é
que eu te busque
mas sim que Tu me buscas em todos os caminhos (Gn 3,9),
que eu te chame por teu nome,
mas que Tu tens o meu tatuado na
palma de tua mão (Is 49,1),
que eu te grite quando não tenho sequer palavra
mas que Tu gemes em mim com teu grito (Rom 8, 26),
que eu tenha projetos para ti,
mas que Tu me convidas a caminhar contigo rumo ao futuro (Mc 1, 17),
que eu te compreenda,
mas que Tu me compreendes em meu último segredo (1 Cor 13,12),
que eu fale de ti com sabedoria,
mas que Tu vives em mim e te expressas do teu jeito (2 Cor 4,10),
que eu te guarde trancado em meu cofre,
mas que eu sou uma esponja no fundo de teu oceano (EE 335),
que eu te ame com todo o meu coração e minhas forças,
mas que Tu me amas com todo o teu coração e tuas forças (Jo 13,1).
Porque como poderia eu buscar-te, chamar-te, amar-te
se Tu não me buscas, me chamas e me amas primeiro?
O silêncio agradecido é minha última palavra,
minha melhor maneira de encontrar-te.
Benjamim Gonzales Buelta sj
"Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer".
Adélia Prado
[in Filandras, São Paulo, Record, 2001, p. 121]
Rugove
Achei que nalgum momento
a luz viria tomar conta de tudo
Que de uma forma ou outra
Lavaríamos os cabelos no mar
Mas hoje o que se vê da janela
é o lado oposto do clarão
É mais uma volta na avenida
com os ombros cobertos de pavor
E eu só sei que acordamos sempre
para o contrário disto
Somos os filhos do verão –
somos o inverso da escuridão
Fonte: Matilde Campilho. Jóquei. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2015, p. 110
CÂNTICO VI - TU TENS UM MEDO
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
CECÍLIA MEIRELES
In: Cânticos, 1982
Se quiser me evangelizar,
Aproxima-se sem demora, sem mais;
Se quiser me falar de Deus,
Deixa que Ele transpareça por ti
Se quiser me dizer da tua relação com o Senhor,
Entrega-se às relações;
Se desejar que Deus me cure,
Mostra-me a saúde que vem do teu toque
Se desejar que eu sinta a ternura divina,
Acaricia-me com o calor humano;
Se desejar que eu experimente a presença de Deus,
Acolhe-me com a tua presença e verdade;
Se precisar mesmo me falar de paixão pela vida,
Permita que eu veja a tua preocupação pelos outros.
Que Deus é esse mesmo? Estranho não?
É mão que sustenta,
É mão próxima que acolhe,
É mão que protege,
É mão que afasta, não o irmão, a exclusão
Não importes tu que eu seja ateu,
Na verdade, quero sê-lo,
Quero ser ateu de um Deus que não me leva ao outro
Somente assim
Se eu não evangelizar,
AI DE MIM
Pe. Julio Santa Bárbara
In: Luz da Palavra. A poesia do Evangelho da vida
Deus do céu
Como é que a gente faz
Pra viver em paz
Não ter fome na terra
Nem guerra
E ser feliz?
Quando o dia nascer
Correr sem medo
Nos tropeços
Inventar brinquedos
A noite, se escura for,
Pedir ajuda na dor
Olhar pro céu
Mesmo sem vê-las
Acreditar nas estrelas
Cantar hinos
Porque Jesus também
Deixou o além
Pra nascer Menino
E viveu
Mostrou na cruz
Que o bem
Mesmo pequeno
É sempre a grande luz
Dom Vicente Ferreira
Bispo auxiliar de Belo Horizonte-MG
ORAÇÃO A SANTA TERESINHA DO MENINO JESUS
Perdi o jeito de sofrer.
Ora essa.
Não sinto mais aquele gosto cabotino da tristeza.
Quero alegria!
Me dá alegria,Santa Teresa!
Santa Teresa não, Teresinha...Teresinha... Teresinha...
Teresinha do Menino Jesus.
Me dá alegria!
Me dá a força de acreditar de novo
No Pelo Sinal
Da Santa Cruz!
Me dá alegria!
Me dá alegria,Santa Teresa!...Santa Teresa não, Teresinha...
Teresinha do Menino Jesus.
Manoel Bandeira
Renuncio às palavras
e às explicações.
Ando pelos contornos,
onde todos os significados
são sutis, são mortais.
Não quero perder o momento
belo. Quero vivê-lo mais,
com a intensidade que exige a vida:
desgarramento e fulguração.
Então me corto ao meio e me solto
de mim:
a que se prende e a que voa,
a que vive e a que se inventa.
Duplo coração:
a que se contempla e a que nunca
se entende,
a que viaja sem saber se chega
- mas não desiste jamais.
["Rosto com dois perfis", Lya Luft]
"O certo é que um menino nasceu e partiu.
Deixou um recado para ser lido no cosmo infinito, no espelho da água, no silêncio da pedra, no percurso do vôo, no silencio das dúvidas.
Mas só quem olha com dois olhos pode decifrar.
A sua presença ficou no sopro do vento, no ruído do inseto, no canto da cigarra, na queda da chuva, na maré do mar, no rumor da cachoeira.
Mas só quem escuta com os dois ouvidos pode entender.
Nas palavras que trocam a guerra pela paz, o amargo pelo doce, o nunca pelo sempre, sua visita breve fica mais confirmada.
Mas ninguém contesta que há um “antes” e um “depois”, e que houve uma noite feliz".
Bartolomeu Campos Queirós
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