“Quem vem a mim não terá mais fome...” (Jo 6,35)
Continuamos seguindo o cap. 6 do evangelho de S. João. No texto deste domingo Jesus entra diretamente em discussão com os judeus e o v. 59 diz expressamente que este encontro conflituoso teve lugar na sinagoga de Cafarnaum. Estamos no início de uma discussão longa e dura, na qual Jesus vai aprofundando as exigências do seguimento. E, à medida que Ele vai radicalizando o discurso, aumenta a distância dos seus ouvintes. O processo será esse: entusiasmo, dúvida, desencanto, desilusão, oposição, rejeição, abandono.
O diálogo tenso desvela a real motivação daqueles que O buscavam, não porque tinham visto sinais, mas porque comeram pão até ficarem saciados. O “sinal” tinha sido um convite a compartilhar. Mas eles se fixaram só na satisfação da própria necessidade. Esvaziaram o sinal de seu conteúdo. Essa busca de Jesus é vazia, porque eles só estavam atrás da segurança alimentar. Jesus vai diretamente ao ponto e desmascara tal intenção. Não buscavam a Ele, mas o pão que Ele lhes deu. Não O buscavam porque Ele abriu as portas de um futuro mais humano, mas se fixaram nos seus próprios interesses.
“Eu sou o pão da Vida”. Em todos os grandes discursos que encontramos no 4º. Evangelho, há uma referência explícita à Vida, com maiúscula. Trata-se de uma realidade que não podemos explicar com palavras, nem enquadrá-la em conceitos humanos. Somente através de símbolos e metáforas podemos indicar o caminho de uma vivência que é o único que nos levará a descobrir de quê se está falando.
A Vida que Jesus promete não vem de fora e de maneira espetacular, como o maná no deserto. Ela está presente em cada um e se manifesta no cotidiano, como amor descentrado, como partilha dos dons, como preocupação pelo outro. Esta Vida interior é ativada pela adesão e identificação com a pessoa de Jesus. Daí a necessidade de trabalhar pelo alimento que dura dando Vida definitiva. Este apelo de trabalhar em favor da Vida, é o resume de toda a mensagem do evangelho deste domingo.
Jesus salva e alimenta porque é pão. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Devemos unir a imagem de Jesus/pão com a imagem Jesus/grão de trigo que é triturado para ser alimento e fecundar a vida. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.
E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”. Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna... Quanto pão para ser dividido! Em nosso interior há uma reserva de nutrientes, de pão substancioso, que corre o risco de perder a validade, se não é compartilhado. O centro da vida é “pão”, e (como Jesus), só somos pão na medida em que partilhamos o que somos e temos.
Tal como Jesus, todo(a) seguidor(a) é chamado(a) a ter vida e a ser vida. E vida expansiva. A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho. Vida é encontro, interação, comunhão. Vida é solidariedade. Vidas são olhares que se cruzam, são mãos que se estendem e se estreitam, são passos que rompem distancias e se interligam. Somos chamados a ser “biófilos”, amigos e defensores da vida.
“É entre nossas mãos que está a vida” (Bloch). Nossas mãos não podem jogar fora a vida. Nossas mãos precisam manter, nutrir e proteger a vida. Nossas mãos devem ser protagonistas para sustentar a vida, precisam dignificar a vida. Nosso compromisso é preservar a vida que dança em nossas mãos. Nas raízes profundas do nosso ser, reside a Biofilia, o amor à vida.
“Eu sou o pão da vida”. O encontro com a Vida que se faz Pão nos move a buscar o sentido de nossa própria existência; e quem encontra o sentido se torna dinâmico, persegue um horizonte, abre-se a uma causa mobilizadora. Para isso é necessário outro ritmo de vida, que nos permita vivê-la com mais sabor, com mais autenticidade.
A vida é vivida intensamente quando a força do “Pão da Vida” atua, impulsionando a abrir, a avançar, a progredir. Porque a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor. É este dinamismo de amor que somos chamados a contemplar no mistério do Pão da Vida, do qual cada pessoa é uma pequena, mas preciosa imagem. O(a) seguidor(a) de Jesus deixa refletir esta imagem em sua vida concreta de cada dia quando vive esse dinamismo do “pão partilhado”, numa relação cordial, aberta e receptiva à originalidade do outro, entrando num verdadeiro dinamismo de vida. Um dinamismo de amor.
A adesão a Jesus, portanto, não fica na exterioridade. Ele não é modelo exterior a ser imitado, e sim, é presença interiorizada. Essa comunhão íntima muda o interior do(a) discípulo(a), possibilita a sintonia com Jesus e faz viver a identificação com Ele. Fazendo-se alimento, Jesus nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade, desperta nossa vida, arrancando-a de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes.
E Jesus não somente vai conosco, mas nos precede, nos sustenta e, na liberdade de seu amor, nos impele a ampliar nossa vida a serviço. Toda peregrinação, em clima de admiração e assombro, se revela rica em descobertas e surpresas, e desperta o coração para dimensões maiores que a rotina de cada dia. Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição.
Jesus se revela, assim, como autoridade de amor, porque ofereceu seu “corpo”, isto é, sua vida, para que outros pudessem viver. Na multiplicação dos pães, nas refeições com pecadores e sobretudo na Última Ceia, Ele oferece aquilo que não pode ser comprado nem vendido: o pão do próprio corpo carregado de humanidade, o vinho de sua vida portador das energias alegres e criativas.
Comungar o pão e o vinho não é só aderir a Jesus, à sua pessoa e à sua mensagem; não é só experimentar sua intimidade, deixando-se transformar por Ele. Implica estar dispostos a comungar com todos, porque Jesus nunca vem só: “traz” com ele toda a realidade. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (papa Francisco).
Todo ser humano carrega “outras fomes” em seu interior. Jesus procura despertar nas pessoas uma fome diferente: Ele lhes fala de um pão que não sacia a fome de um dia, mas a fome e sede de vida plena. Ou seja, ser seu seguidor é associar-se à Sua Fome: aliviar o sofrimento humano. Trata-se de uma “fome humanizadora”: fome de comunhão, de cuidado, de compaixão..., fome de novas relações, de um mundo novo... Fome de vida! Jesus quer oferecer-lhes um alimento que pode saciar esta fome de vida.
Texto bíblico: Jo 6,24-35
Na oração: Jesus é Aquele que sabe a arte de despertar fomes. Estamos saturados de “coisas”, mas carentes de fome. Quem tem fome, busca, cria, constrói... Quem não tem fome cai numa apatia paralisante.
Experimentamos fome quando saímos de nós mesmos, quando nos consumimos no trabalho pelo Reino, quando nos empenhamos por abrir caminhos de humanização...
- Quais são minhas fomes existenciais?
- Vivo faminto de sabedoria? Ou me contento com alimentos que não saciam?
- Em quê circunstâncias experimento ser “pão de vida”?
- Quê pão me sacia existencialmente? De quê tenho fome?
Pe. Adroaldo Palaoro sj