Celebramos, neste último domingo do ano, a festa da Sagrada Família. Os textos da liturgia fazem referência a temas familiares. A partir de uma visão cristã, a família revela sua missão insubstituível: ser uma comunidade de amor, onde aqueles que a integram possam se abrir aos demais com uma total sinceridade e confiança. As exortações de S. Paulo à mansidão, à paciência, ao perdão e, sobretudo, ao amor, é o fundamento para as famílias de nosso tempo.

O espaço familiar é tão essencial para o amadurecimento e crescimento das pessoas que Deus escolheu a família de Nazaré como lugar de “humanização de seu Filho”. No cotidiano do lar de Nazaré, Jesus deixou transparecer que a “Trindade é a Família fontal”; nela, todas as famílias devem buscar inspiração.

De fato, Nazaré e a casa familiar foi para Jesus uma parábola trinitária. José, o artesão que lhe ensinou e o treinou para fazer suas mesmas obras, era o símbolo vivente do Abbá. Maria era a presença inspiradora, a que mantinha viva a chama do amor e da criatividade, a que transformava a casa em lar e em seio fecundo. Era ela o ícone vivente do Espírito. E Jesus, o aprendiz.

Foi na escola cotidiana da família de Nazaré, que Jesus foi se humanizando: “Ele crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52)

Nazaré nos revela o sentido do cotidiano, das horas, dos meses, dos anos escondidos, da vida tranquila, provinciana, não-escrita, de uma família simples e iluminada.

Essa atenção à simplicidade do cotidiano, à natureza da Galileia, à mensagem que Deus esconde nos corações das pessoas, nas coisas, nas horas…, é uma constante na vida e na família de Jesus. Nazaré é o sinal da epifania de Deus nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples e familiar, é o sinal da presença graciosa de Deus em todas as casas.

O ritmo da sociedade atual e, sobretudo, o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, ao consumismo, nos mantém muito distantes do ambiente familiar de Nazaré.

Estamos mergulhados numa cultura onde, normalmente, o cotidiano é rotineiro, convencional, repetitivo, e, não raro, carregado de desencanto. Fechado em si mesmo o cotidiano torna-se pesado, desinteressado e frustrado. Geralmente não nos damos conta de que estamos envolvidos pelo cotidiano.

No entanto, as grandes histórias são tecidas na trama do cotidiano; os “tempos” de Deus não são os da eficácia, da produção, do ritmo estressante... Também são os tempos do silêncio, da rotina inspirada e da aprendizagem silenciosa. Todo crescimento pessoal demanda previamente tempo, ritmo, reconhecimento e aceitação da própria verdade, sólidos fundamentos sobre os quais podemos construir nossa pessoa.

É a “mística” que nos desperta da letargia do cotidiano. E despertos, descobrimos que o cotidiano guarda segredos, novidades, energias ocultas, forças criativas... que sempre podem conferir novo sentido e brilho à vida. O Reino também se revela no pequeno, no anônimo, no despojamento.

É o cotidiano que nos prepara para as grandes decisões. É a fidelidade ao cotidiano que possibilita a transformação da realidade; é o cotidiano que abre espaço à ação do Espírito para que Ele nos expanda, nos alargue e nos impulsione em direção a uma nova vida.

O texto de Lucas deste domingo nos revela que junto às crianças, protagonistas do tempo natalino, estão os idosos. O acontecimento da apresentação de Jesus no templo nos situa diante do encontro de gerações: as crianças e os anciãos. Crianças e idosos constroem o futuro dos povos. As crianças porque levarão a história para frente, os anciãos porque transmitem a experiência e a sabedoria de suas vidas.

É interessante o que Lucas indica: dois anciãos do povo tinham passado a vida inteira esperando e com os olhos bem abertos para descobrir o menor indício de que se aproximava a libertação para o povo. Não causa estranheza que Lucas mostra Maria e José assombrados diante daquilo que se dizia do menino.

Aqueles que acolhem a Jesus e o reconhecem como Enviado de Deus são dois anciãos de fé simples e coração aberto, que viveram sua longa vida esperando a salvação de Deus. Seus nomes parecem sugerir que são personagens simbólicos. O ancião se chama Simeão (“o Senhor escutou”), a anciã se chama Ana (“presente”). Eles representam tantas pessoas de fé simples que, em todos os povos de todos os tempos, vivem com sua confiança centrada em Deus.

Os dois pertencem aos ambientes mais sadios de Israel. São conhecidos como o “Grupo dos Pobres de Javé”. São pessoas que não tem nada, só sua fé em Deus. Não pensam em sua fortuna nem em seu bem-estar. Só esperam de Deus a “consolação” que seu povo precisa, a “libertação” que andam buscando, geração após geração, a “luz” que ilumine as trevas em que vivem os povos da terra. Agora sentem que suas esperanças se cumprem em Jesus.

Pertencemos a uma geração atravessada pelo imediatismo e pressa, com enorme dificuldade para respeitar processos de longa duração: somos vítimas da rapidez das redes sociais, navegamos pela internet, usamos meios de transportes cada vez mais rápidos, cozinhamos no micro-ondas, consumimos sopas instantâneas...

Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação... e vamos perdendo, pouco a pouco, o sentido da história pessoal e comunitária.

O problema é que, com frequência, buscamos aplicar estes mesmos ritmos às relações humanas; no entanto, nem uma amizade, nem um casal, nem uma família, nem uma comunidade, são forjadas com essa medida ultrarrápida do tempo; elas precisam de processos lentos de crescimento e amadurecimento, e isto se torna cada vez mais difícil de respeitar.

É preciso recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida cotidiana.

É preciso "nos deixar surpreender por Deus" constantemente. E Deus espera que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”.

É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer.

O velho Simeão e a profetisa Ana, a quem Lucas nos apresenta esperando toda sua vida pela chegada do Messias e glorificando a Deus por tê-lo encontrado em seus últimos dias, nos oferece a sabedoria do saber esperar. A imagem que o evangelista nos dá deles é que ficaram sumamente recompensados por terem passado a vida inteira à espera e que, como a espera não foi frustrada, mas premiada de maneira abundante, sua alegria se transbordou no louvor e no agradecimento.

Esperar algo ou alguém requer uma capacidade que costumamos traduzir por “paciência”, mas que implica muito mais acolher que suportar. Revela uma capacidade de ser receptivo e isso só é possível com uma confiança que se instala no coração e que dá forças para assumir a vida concreta, os acontecimentos e as atividades que trazem em si algo de custoso, penoso, contrariante...

As imagens que o NT usa para falar dessa atitude sugerem que aquele que espera já começa a desfrutar no presente daquilo que é objeto de sua espera, embora a posse total daquilo que já começou a ser saboreado é ainda objeto de promessa.

Os idosos Ana e Simeão, podem nos comunicar algo do segredo da esperança, sobretudo no ambiente familiar, lugar dos lentos processos de maturação humana, tanto dos pais quanto dos filhos.

Texto bíblico:  Lc 2,22-40

Na oração: A vida cotidiana exige não apenas fidelidade, mas também amor, gratuidade. É o lugar que inspira a viver encontros com a marca da surpresa, da acolhida do diferente, do respeito ao outro...

- Como é o seu cotidiano familiar? rotina e repetição ou desafio e criação? Espaço de encontros inspiradores ou alimentador da indiferença? Nele há lugar para a esperança e o novo?

- Suas atividades diárias formam parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nos “ritmos familiares”?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

29.12.23