“Jesus viu uma grande multidão e, tomado de compaixão, curou os seus doentes” (Mt 14,14)

 

Quem é verdadeiramente humano? Aquele que é movido pela compaixão.

O grau de humanidade (ou de barbárie) de nosso mundo se mede pelo grau de sensibilidade diante da dor humana. E é a compaixão a melhor expressão dessa sensibilidade e humanidade: deixar-nos afetar pelo que acontece – ou seja, ter uma sensibilidade limpa, desbloqueada e vibrante.

Definitivamente, a compaixão é central para sermos humanos. O sofrimento das vítimas nos “descentra” e nos faz “descer com paixão” aos seus pés e nos situar ao lado (a favor) delas. Sempre se pode “passar para o outro lado”. Aí é onde se abrem espaços à compaixão. 

No interior de todos nós há sempre reservas e redutos de bondade, muitas vezes, adormecidos, mas que podem ser ativados diante da dor e da miséria dos outros. Não somos sempre e totalmente egoístas. Uma desgraça, uma tragédia... podem muito bem “impactar nossas entranhas” e despertar a consciência de que fazemos parte da mesma família humana. 

Esta compaixão não é meramente um sentimento privativo, mas reação “apaixonada” diante das injustiças sangrentas de nosso mundo. Nos sofredores há algo que atrai e convoca, que nos faz sair de dentro de nós mesmos e nos fazer próximos  dos sofredores; aí reside a origem da solidariedade que suscita uma ação eficaz e um compromisso de vida a favor de quem é vítima de situações injustas. 

Ao mesmo tempo, não é raro que a compaixão desperte o contato com a nossa própria vulnerabilidade ou fragilidade. Quando acolhemos toda essa nossa realidade a partir de uma atitude humilde, é provável que emerja um sentimento amoroso para nós mesmos. E, a partir dele, nos tornamos mais sensíveis ao sofrimento dos outros.

O campo da compaixão é o encontro pessoal, ou seja, quando as pessoas decidem romper as barreiras que as isolam e deslocar-se uma em direção à outra. No encontro, estabelecem-se relações que mudam as posições entre si, umas e outras intercambiam seus lugares vitais e os laços da existência ficam reforçados.

O primeiro traço do encontro compassivo é a gratuidade. Aqui não se gera uma situação de dependência ou de senhorio, mas revela-se um “excesso” de amor, que não se mede. 

Outro traço do encontro compassivo é a proximidade. Tocar, ver, aproximar-se, deixar-se afetar..., são requisitos da compaixão, superando as barreiras da indiferença, da falta de atenção. A distância os fez estranhos, a proximidade, o abraço os devolve a seu lugar: filhos, amigos, amados, festejados...

O terceiro traço do encontro compassivo é a profundidade, que desperta a capacidade de amar que está presente em todo ser humano. Compartilha-se a ferida mais profunda da outra pessoa. Só se pode amar o que tem mistério, e onde há mistério há profundidade. 

A cena evangélica da multiplicação dos pães revela que o Reino nem sempre chega pelos caminhos “religiosos”, mas pode chegar através da compaixão despertada pela situação desumanizadora do outro. A compaixão derruba todas as barreiras.  Compaixão, no seu sentido etimológico, quer dizer “sofrer com”. Esse é o sentido do amor: ter o outro dentro da gente. A compaixão é uma maneira de sentir. É dela que brota a ética. A falta de compaixão é uma perturbação do olhar. Olhamos, vemos, mas a coisa que vemos fica fora de nós.

“Jesus olhou e multidão e teve compaixão”. Ele faz vibrar as pulsões do humano presentes em cada pessoa. Seu jeito de “ser humano” entra em sintonia e desperta o que é mais humano no outro. Um dos traços que definem a nossa época é o fato de ser uma era de “sem-compaixão”, um tempo no qual se faz muito difícil vibrar de verdade com os outros, e especialmente com os outros maltratados pela situação sócio-econômica. A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais. 

No evangelho de hoje, em contraste com atitude compassiva de Jesus diante das multidões, os discípulos, percebendo a hora avançada, pedem que elas sejam despedidas para que comprem pão e se alimentem. Esta é a lógica desumanizadora: devolver as pessoas às suas próprias possibilidades limitadas, à escassez e à privação que a sociedade as relegou. Os discípulos são sensíveis à fome do povo empobrecido, mas o deixam à mercê de seus próprios recursos. Não conhecem outra solução.

Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à logica do mercado, focado na  apropriação e na acumulação. “Quantos pães tendes?”, pergunta que desinstala e possibilita encontrar uma saída, pequena mas mobilizadora: a partilha de cinco pães e dois peixes.  Só se fará efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não há possibilidade de construção do Reino de Deus. 

A multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a relva, iguais, sem divisão em hierarquia, que costuma criar fissuras na comunhão. Os que tinham algo para comer também foram repartindo com os outros. Na realidade, o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre os pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é milagre. 

Em cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça devoradora. Os bens deste mundo carregando dentro uma vocação fraterna e universal. São dons para todos. 

Nesta refeição de todo o povo sobre o campo verde não se discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão ou sua situação moral e religiosa. Todos são acolhidos como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos a compartilhar sua mesa. Todos se sentem pessoas dignas e amadas. 

Esta é a utopia do Reino: tudo está reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, numa relação harmoniosa entre si e com Deus, sem exclusões, competições nem privilégios. 

A compaixão de Jesus situa tudo na lógica do amor, que é a única força transformadora da história. 

Texto bíblico:  Mt 14,13-21 

Na oração: A oração é também  questão de densidade de vida, de humanismo, de ativar a sensibilidade para com aqueles que não têm quem os defenda; é revelar que em nosso peito bate um coração de amor infinito, capaz de vibrar e mobilizar-nos em favor dos outros. A oração implica entrar em sintonia com o coração compassivo de Deus voltado para a miséria humana. 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI