A morte - Arcabas

 

O “Deus sempre maior” se desvela e ao mesmo tempo se vela(oculta) a nossos olhos.

 

Tanto na vida cotidiana dos cristãos como também na liturgia, o Sábado Santo é um dia triste, cinzento, desapercebido, quase esquecido. Seu centro é o sepulcro; é um dia sem liturgia, em silêncio, não acontece nada, recorda a solidão do sepulcro, a tristeza das mulheres e dos discípulos, a desilusão diante do fracasso. 

Todos, em algum momento de nossa vida, temos atravessado ou atravessamos períodos de tristeza, luto, frustração ou fracasso de projetos ou expectativas. Momentos de sofrimentos físicos, morais ou espirituais, situações de carência de sentido da vida e de injustiças flagrantes vão marcando nossa existência.

A experiência do “Sábado Santo” é uma experiência tipicamente humana e cristã e aqueles que passaram por ela são luz e consolo para os outros. 

Como seguidores de Jesus, vivemos nossos Adventos, Natais, Quaresmas, Páscoas e Pentecostes; também vivemos nossas Sextas-feiras santas. É preciso também aprender a viver os Sábados Santos.

O Sábado santo é seguramente o tempo da Igreja e da liturgia que nos cabe viver mais largamente em nossa vida: há um silêncio angustiante de Deus diante das injustiças do mundo, diante da violência, da fome, da enfermidade, da destruição da natureza, da morte... Deus parece dormir, se cala, escuta-se o silêncio de Deus...Para muitos, não há nada além do sábado de sepultura; esse sábado não teria nada de “santo”, seria o sábado do fracasso e do sepultamento daquele que culpavelmente se viu privado de vida. O desconcerto diante da Sexta-feira santa pode chegar a tal ponto que não resta esperança, nem razão para a missão. 

O Sábado Santo, no entanto, nos impulsiona a entrar em outra concepção do tempo e em outro modo de viver. Neste dia, toda a Igreja sente um peso profundo que não a deixa ainda desfrutar da vida. Estar à espera ou em chave de sábado santo, é um estado difícil... em tensão. É o dia da paciência, o dia da esperança freada, o dia em que a esperança é acrisolada pelo fogo.

Nosso Sábado não é simplesmente um final. É um convite à fé. A atitude criativa e crente é confiar muito mais no Deus que, parece, se ausentou de nossas vidas.  Na verdade, toda a realidade está cheia da Presença ausente de Deus. A ausência é a linguagem do amor: dinamiza, impulsiona a progredir no conhecimento da pessoa amada e a esperar o encontro com ela. 

Na relação com Deus acontece o mesmo. O movimento do encontrar-se-afastar-se, o lamento da separação e a dor da ausência gera um insaciável desejo de busca e espera vigilante d’Aquele que em qualquer momento pode fazer-se presente. 

Com sua Presença e sua Ausência Deus mesmo nos vai educando o coração. O velar-se-desvelar-se de Deus fortalece a confiança e nos leva não colocar a segurança em nosso pobre amor, senão no d’Ele. A Ausência ajuda a manter viva a sede de Deus, buscando-O por novos e obscuros canais. Podemos assim transitar por caminhos desconhecidos só com esta sede de Deus por luz. Deus nos convida sempre a romper as fronteiras do lugar onde habitamos para poder crescer no Amor.

O Sábado Santo irrompe no itinerário do crescimento espiritual porque ir pelo caminho da configuração com Cristo supõe passar por ele. Grande parte de nossas vidas é constituída por longos “sábados santos”. É na vivência deles que se dá um aumento de percepção e compreensão da experiência de Deus. Apesar da dor e da provação, temos a certeza da “fonte que mana e escorre”. São momentos de aprendizagem em “deixar Deus ser Deus” na nossa própria vida, para que Ele continue sendo nosso verdadeiro Centro e assim todo nosso ser e agir possa ser para sua glória e louvor. Eles nos preparam para que possamos nos aproximar de Deus com todas as capacidades de comunhão abertas. 

O ocultamento de Deus neste dia é só provisório. Em nós pulsa a “teopatia” (paixão por Deus). E nosso Deus não nos vai defraudar. E esperamos porque “cremos n’Ele”, esperamos o melhor de sua bondade. O Espírito ficou sem Palavra, mas já sussurra; Ele paira sobre nosso “caos” interior para ali estabelecer o “cosmos”, a harmonia e a beleza da vida. Algo grande está prestes a acontecer.

O Sábado Santo, na realidade, constitui um momento de purificação no qual nos é oferecida a oportunidade de desprender-nos de tudo aquilo que em nossa mente e em nosso coração confundimos com Deus. Nele, Deus nos transforma em seu Amor. 

É no Sábado onde podemos concentrar toda nossa atenção em Deus como nosso Tudo, sem que outra coisa possa dispersar-nos. A fidelidade a Deus é a condição da união com Ele. No Sábado da espera somos convidados a exercitar-nos na fé, na esperança e no amor. O Sábado, sem a certeza de que é a antessala do Domingo da Ressurreição, é só morte e convoca à morte.

No Sábado Santo somos todos terra de penumbra. Nela se antecipa a esperança do dia de Páscoa. Como as mulheres, vamos ao sepulcro, levando aromas. Aberto à expectativa diante do amanhecer que traz notícias, o Sábado se converte em um tempo fecundo. Cheio de sombra, é verdade, mas fecundo porque refaz nossas forças, nos convoca ao essencial e nos confirma no que queremos ser: homens e mulheres de fé.

Como seguidores de Jesus somos testemunhas não do fracasso, mas de ricas e surpreendentes possibilidades. Com tudo, apesar de tudo e com o peso de tudo, sabemos que o Sábado não é uma espera inútil, é uma espera fecunda.  Sábado Santo é tempo não só de espera senão de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a dar fruto, é tempo de um inverno que fará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-se a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma igreja nazarena. O Sábado Santo é, ao mesmo tempo, sepulcro e mãe, como diziam os antigos Padres da igreja ao falar do batismo.

Este espaço de silêncio não é de morte mas de vida germinal, é noite que aponta para a aurora, é momento de semear, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doador de vida, está fecundando a história e a terra para sua maturação pascal, para a nova terra e o novo céu. 

Ainda mais, este tempo é necessário, imprescindível para que deixemos de nos olhar para nós mesmos e nos abramos aos primeiros reflexos de Ressurreição que estão chegando, inclusive de lugares que não costumamos olhar. 

Texto bíblico:  Lc 23,50-56 

Na oração: fazer memória dos Sábados Santos  (perdas, fracassos, lutos...) como tempo de maturação da própria vida e como possibilidade de surgimento do novo. 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI